She's lost control

terça-feira, 1 de junho de 2010

E assim dizia Sade... (4)


"Não há outro inferno para o homem além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes."

De volta ao lar


Aurora se mexe de um lado pro outro na cama e por fim abre os olhos. Ainda é madrugada, os ponteiros do relógio marcam três horas em ponto. Ela fecha os olhos novamente e tenta segurar a pressão que insistia em alertá-la a todo o momento. É, seria inevitável, teria que ir ao banheiro mesmo que o sono pedisse o contrário.

Finalmente Aurora se levanta e segue em direção ao banheiro. Todas as luzes estão apagadas e Aurora acaba tropeçando em algo antes de alcançar a porta do banheiro e tentar acender a luz. Quando ela consegue acender a luz rapidamente se vira e tenta ver no que ela havia tropeçado. Não havia nada no chão a não ser os sapatos de seu marido Hef, que ficavam ao lado da cama onde ele estava dormindo. Ela não deu muita atenção à isso – devo estar dormindo – pensou ela, achando graça da situação.

Aurora se olhou no espelho por alguns segundos, mexendo aqui e ali, reclamando de algumas rugas que ela cismava em dizer que tinha mesmo com todos dizendo que não havia nada de errado com sua aparência. Sentou-se no vaso e ficou ali quase dormindo. Seus olhos pesavam mais que tudo. Parecia estar sonhando ainda. Acabou cochilando sentada, mas foi acordada por duas batidas no basculante do banheiro. Ela fixou os olhos naquela janela esperando por alguns segundos para que o marido aparecesse debochando do susto que ela havia levado, mas ele não aparecia nunca. Ela então cansou de esperar e se levantou para sair do banheiro. Levou um enorme susto quando olhou para a cama e viu que seu marido permanecia ali, do mesmo jeito que estava, ele não havia se movido um centímetro sequer. Então ela decide ir ver se alguém estava por perto. Aquela área era muito calma, se houvesse alguém do lado de fora certamente não seria um bandido ou coisa parecida. Pode ter sido um vizinho ou algum amigo. Então ela sai pra verificar.

Aurora abre a porta da varanda e percebe que a rede está balançando. Um pequeno ruído faz com que ela se vire rapidamente para a direção da janela, era como se alguém do lado de dentro da casa a tivesse aberto. Mas como? Pensava Aurora. Seu marido está no quarto que fica do lado oposto daquela janela que dava pro quarto de hóspedes e, não tinham hóspede algum naquela noite. Será que o marido acordou? Mas que diabos ele estaria fazendo ali no quarto de hóspedes? Era o local mais inabitado da casa. Há tempos não recebiam visitas que pernoitassem, isso desde que eles perderam sua filhinha de 7 anos num acidente de trânsito quando voltavam da casa dos avós da menina. Mas o que estaria acontecendo naquela noite? Será que ela ainda estava no sonho? Tudo estava parecendo tão surreal.

Aurora se vira novamente para a rede, que havia parado de balançar. Outro barulho, agora dentro da casa. Aurora se vira e fica atônita com o que vê.


- Devo estar sonhando. Como pode? E... – antes que pudesse terminar a frase Aurora cai desacordada no chão.

Muito tempo depois Aurora acorda dentro de um caixote que mais parecia com um caixão. Ela se debate, parece faltar o ar. Está presa e não sabe se está enterrada também. Àquilo a fazia ficar mais apavorada ainda. Percebeu no canto superior do caixão um cano de onde podia ver o dia claro lá fora. Um misto de desespero e alívio tomaram conta do coração de Aurora. Pela distância que o cano aparentava ter ela podia ter a certeza de que estava enterrada, mas pela largura do cano seria fácil alguém escutá-la se passassem ali por perto. Então ela colou o ouvido no cano, se mexendo o máximo que conseguia, para tentar escutar o que se passava do outro lado do caixão. Nenhum barulho, nem de animais, nada. Ela teria que esperar e tentar controlar a respiração para que o pouco ar que tinha não fosse embora de uma só vez. De vez em quando se sufocava e colocava logo o nariz na ponta do cano para tentar sugar o ar que estava lá fora.

De repente Aurora escutou coisas se arrastando lá em cima. Buscou o buraco do cano e fixou seus olhos naquela parte tentando descobrir o que se mexia lá em cima. Escutou barulho de martelo e, quando menos esperava, viu uma mão descendo fechada pelo cano. Ficou assustada e começou a gritar.


- Socorro!!! Alguém está aí!?!? Por favor, me ajude!!!


E não obteve nenhuma resposta do outro lado. A mão que apareceu soltou alguns insetos em cima de Aurora que começou a gritar mais alto.


- Quem você é? O que é você? De onde saiu? O que tem contra mim? Porque está fazendo isso comigo?


A única coisa que Aurora ouviu foi uns risos que lembravam muito bem o sorriso de uma pessoa muito querida por ela.


- Ai, meu Deus! O que está acontecendo?!?!?! Minha filha não está mais entre nós!!! Pare de me torturar!!!


Desde que perderam a filha, os Spencers não eram os mesmos. Faziam de tudo para conseguir mais um momento com a filha. Buscavam em religiões; seitas; “magias”; ou qualquer outro grupo espiritual que prometessem trazer sua filha de volta, nem que por alguns instantes. Porém, com a busca incessante de respostas e algo mais, eles se afastavam do que poderia ser real e acabavam sendo vítimas de “falsos videntes/paranormais”. Ou pelo menos era o que muitos amigos acreditavam. Chegavam até a sugerir que eles fossem procurar ajuda psicológica, pois pessoas que acham que a filha poderia um dia voltar dos mortos com certeza não poderiam ser considerados normais.


O calor parecia derreter o corpo de Aurora. Suas forças já haviam se esgotado e, o que antes era a voz dela saindo agora mais pareciam sussurros e gemidos no meio do nada. Ela ainda insistiu por mais alguns instantes, mas sabia que era em vão. Parou e a partir daquele momento passou a captar cada movimento que vinha de fora por meio do cano. A presença dos insetos dentro do caixão passaram a incomodar devido aos ruídos que estes sonorizavam e que acabavam atrapalhando a observação de Aurora com o que vinha do exterior do caixão. Ela colocou o olho na boca do cano, para ver se conseguia observar alguma coisa. Ficou naquela posição por um bom tempo até que foi surpreendida com outro olho fitando em sua direção. Aurora sentiu o corpo inteiro estremecer junto com uma sensação esquisita e um frio imenso que percorria sua espinha dorsal. Aquele olhar um dia foi doce e ali, naquele momento, parecia o olhar mais frio do mundo, completamente isento de qualquer sentimento. As pálpebras estavam escuras e em algumas partes do olho podiam se observar costuras que já estavam secas, porém sem cicatrizes. Era uma visão aterrorizante que se misturava com a sensação de impotência por parte de Aurora que de certa forma já estava prevendo o que aconteceria.


Enquanto isso, na casa dos Spencers, John se levantava. Achou estranho a ausência da mulher, pois ela sempre acordava mais tarde que ele. Bom, pensou que talvez ela tenha levantado com alguma disposição (o que era muito improvável, pois depois da grande perda da vida deles nada mais trazia alegria nem incentivo para viverem bem); talvez ela tivesse saído para dar uma volta pelo bosque. Ele achou que não deveria se preocupar e que logo ela voltaria porém, com as horas se passando John foi começando a se preocupar de verdade. O dia já estava indo embora, o sol se pondo. John então se equipou com uma lanterna e uma espingarda antiga - que guardava como lembrança da sua época de caçador. Pegou seu casaco e saiu em busca de sua esposa. Andou por várias horas, fuçou cada cantinho daquela cidade, mas voltou para casa sem nenhuma notícia da esposa. Não conseguiu dormir naquela noite. Estava realmente preocupado com o que pudesse ter acontecido à sua esposa. Estava desconsolado, não acreditava que depois de perder a filha pudesse ter perdido também a esposa.


John acorda com um barulho depois de um pequeno cochilo. Olha à sua volta e não vê ninguém. Percebe um vulto vindo da varanda.

- Aurora, é você meu amor? - Outro vulto, dessa vez mais perto dele – Não estou pra brincadeira amor, te procurei o dia todo!

Quando se levantou para olhar se era a esposa John escuta um barulho vindo do quarto de hóspedes. Rapidamente se levanta e vai naquela direção. Quanto mais se aproxima, mais escuta os ruídos que vinham do quarto. John abre a porta lentamente e olha perplexo para o que vê na sua frente. Clarinha estava sentada no pé da cama, com aquela bonequinha que a mãe havia dado de presente para ela no seu 3º aniversário. Clarinha olha na direção de John.


- Papai, a mamãe ta te esperando. Vem brincar com a gente!?!


- Não! – gritou ele. Não poderia ser a Clarinha doce e meiga, não poderia ser a filhinha deles. Aquela voz não era a dela. Era um pesadelo! Era a única explicação. Porém John não teve tempo de pensar, aquele vulto veio em sua direção e de repente ele não viu mais nada.


Algum tempo depois a notícia estava estampada em todos os jornais da cidade. Era o comentário de cada pedacinho da pequena “Vila Velha”. E no jornal de maior circulação a frase estampada era:

“PAIS SEGUIDORES DE SEITA SATÂNICA DESENTERRAM A FILHA E DEPOIS SE MATAM”

E no texto dizia:

“Os três foram encontrados esta manhã pela vizinha que desconfiou da ausência do casal Spencer na reunião de moradores da pequena “Vila Velha”. De acordo com Siara Parker, o casal e a filha – que teria sido desenterrada pelos próprios pais – estavam na sala de estar deitados no tapete, como sempre estavam quando passavam uma tarde em família. O mais estranho é que o casal parece ter se mutilado com marcas que correspondem exatamente às marcas que ficaram em sua filha quando a mesma sofreu um acidente de trânsito por culpa de uma discussão que os pais estavam tendo dentro do carro da família e que, teria sido o motivo do acidente segundo apontaram as investigações.

Os corpos serão enterrados nesta tarde e a casa será colocada à venda junto com os pertences da família. Temos ainda a informação de que a avó da menina teve que ser levada às pressas ao pronto socorro devido à uma taquicardia que sofreu depois de, segundo ela, ter tido contato com a neta algumas horas antes do incidente. Segundo informações ela será internada para que passe por um tratamento psicológico até conseguir lidar com estes acontecimentos.”